José Vegar
3 min readJul 6, 2022

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Decifrar Ishiguro

A decifração do modo como Kazuo Ishiguro partilha o seu imaginário obriga à entrada em alguns labirintos que exigem algum mapa prévio, algum conhecimento como bagagem, para além de um pedido delicado ao leitor de uma sensibilidade que lhe permita ao mesmo tempo descobrir a delicadeza e não deixar fugir o velado.

A decifração exige concentração para encontrar os inúmeros pormenores encantatórios de uma escultura floral japonesa, mas também para especular sobre os incontáveis implícitos que Borges teceu.

Não é que o processo narrativo de Ishiguro seja obscuro e elaborado, pelo contrário é incrivelmente límpido.

É apenas que uma voz narrativa discreta pode velar tanto em si.

“Klara e o Sol”, o último texto publicado pelo autor, usa de novo este modo singular narrativo, em que a claridade rasa da forma e da trama vela temas e enigmas que contam para todos nós.

O centro do enredo é a relação entre Klara, um ser artificial, e a jovem Josie, num mundo contemporâneo onde os primeiros são habitualmente comprados para a função de tomar conta de humanos.

É a partir desta fundação que Ishiguro vai pelo caminho único do seu imaginário.

Klara é tratada por AF durante inúmeras páginas, até descobrirmos que AF é a designação de Artificial Friend.

O estatuto de amigo, nunca esclarecido pelo autor o que exige, traz muito consigo, das origens do código que o permite, até à possibilidade de um ser computadorizado mostrar esse sentimento.

A história é contada por Klara, trazendo consigo uma outra dimensão velada, a de como um ser artificial observa o mundo contemporâneo humano e como essa vigilância lhe permite aumentar o seu conhecimento.

Sem que nos seja dado um único sinal pelo autor, a narrativa leva-nos também a dois territórios sensíveis, que até agora são tratados nos espaços da ciência.

O primeiro é o da engenharia genética do embrião humano.

Rick, o grande amigo de Josie, não foi propositadamente “lifted”, é esta a palavra escolhida por Ishiguro, pelos pais quando ainda era embrião e isso elimina a sua possibilidade de frequentar uma boa escola.

O segundo é o da passagem do ser artificial a ser humano.

Desesperada com a doença de Josie, a mãe procura um engenheiro-artista, capaz de, em paralelo, criar uma forma humana que reproduza a de Josie, incorporando-lhe, como mente e alma, Klara, que assim poderia vir a ser uma Josie eterna.

Há ainda alguns outros temas fundamentais em “Klara e o Sol”, mas escrever sobre eles neste espaço estragaria o prazer de quem ainda não leu o texto.

No entanto, é impossível não referir os últimos passos de Klara.

Cumprida a sua função, é depositada num estaleiro, esperando por nada.

A normalização por parte dos humanos de que estão apenas a usar uma máquina para uma função, e a melancolia suave de Klara com o seu destino são talvez os pedaços de como Ishiguro olha o mundo que mais reflexão nos deixam.

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José Vegar

Fieldwork & Narrative since 1969. Lisbon, Portugal.