Foragidos, Desvendados, Recuperados e alguns extraordinários intrusos procurados

José Vegar
3 min readJan 10, 2022
Blade Runner 2049

Não andarei muito longe da verdade se escrever que uma importante parte do que a todo o momento nos invade a mente é dedicada aos nossos foragidos, desvendados, recuperados e intrusos procurados.

São passos permanentemente em volta de procurar ter de novo bem perto de nós os que nos tocaram e nos importam e estão em paragens longínquas ou desconhecidas, ocultos e silenciosos.

Uma quimera com um pouco de sonho e de desespero.

Um contexto como o referido torna extremamente delicada a leitura dos textos que tradicionalmente os media sérios publicam no princípio do ano, revelando o que nos espera de arte e cultura nos próximos doze meses.

Uma leitura tão delicada como a que fazemos em muitos momentos nos nossos dispositivos tecnológicos, dia após dia, procurando um formato de contacto dos foragidos, desvendados, recuperados e intrusos íntimos.

Os foragidos são aqueles que nos tendo tocado uma vez, tocaram-nos para sempre e que há muito não nos permitem a repetição desse momento mágico.

Não querendo nomear os íntimos, como cada um de nós certamente não o fará, escrevo sobre o foragido escritor que há anos não publica, o pintor ausente em trevas, o realizador ausente, o músico insatisfeito com o que compõe.

Esperamos a todo o momento que voltem com as palavras, os traços, as imagens ou os sons que nos marcam, mas eles persistem em manter-se ao longe.

Deles, resta-nos a nostalgia e a revisitação daquilo com que nos tocaram, e o desejo que rompam de novo.

Em torno dos desvendados, os íntimos e os venerados, circulam as nossas as nossas maiores tristezas.

Estão mortos, daí que quase não podemos voltar a ser tocados por eles.

Resta-nos uma diminuta esperança de que tenham deixado um fragmento de algo para nós, no caso dos íntimos, ou de que um investigador sagaz descubra um manuscrito guardado, uma tela perdida, uma sequência de imagens ou uma peça que ninguém reparou, no caso dos venerados.

Na maior parte das vezes consola-nos apenas a memória, mas nunca desistimos de acreditar na chegada súbita da revelação desse fragmento.

A recuperação dos que uma vez nos tocaram é um momento feliz.

Por recuperação, entendo o regresso dos aparentemente desaparecidos ao nosso pequeno mundo.

Os recuperados, tanto os íntimos como os venerados, são aqueles que julgávamos fixados num lugar privado distante, ou presos numa decisão ou vontade de nada partilhar.

Repentinamente, eis que contactam, marcam chegada, publicam, editam, mostram ou tocam num espaço.

Sentimos, ao viver esse momento, a falta que tanto nos fazem, porque o que transportam consigo para nós ilumina-nos.

Os intrusos procurados são a variante genética mais complexa dos íntimos e dos venerados.

Não podem ser detectados por algoritmos, têm padrões de análise impossível pela big data, não estão acessíveis à vigilância GPS ou biométrica.

É por rompante que chegam até nós.

Uma troca de palavras determinada por circunstâncias improváveis, o peso de umas linhas lidas, o choque ao olhar para a tela, a emoção de sentir na alma os acordes da peça.

Os intrusos procurados são a prova de que o nosso mundo é sempre demasiado pequeno e que a nossa vida não está nunca controlada pela melancolia do previsível.

Há sempre algo de novo e tocante aqui mesmo ao nosso lado.

A minha vontade é de que cada um dos leitores deste texto tenha um 2022 tremendamente ocupados pelos seus foragidos, desvendados, recuperados e intrusos procurados.

Alguns dos meus Foragidos, Desvendados, Recuperados para 2022

Orhan Pamuk, Don DeLillo, J.G. Ballard, Cormac McCarthy, Walid Raad, Rebecca Horn, Moebius, Bilal, Anouar Brahem, Gerhard Richter, Caravaggio.

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José Vegar

Fieldwork & Narrative since 1969. Lisbon, Portugal.