“One.Six.” -A tragédia americana é a de ser a nossa

José Vegar
11 min readJan 10, 2021
Walid Raad — The Atlas Group

Um possível ponto de começo da tragédia é o de que há demasiado tempo as imagens são apenas percorridas e não observadas.

As imagens deixaram de ser procuradas com a cobiça de conhecimento do etnógrafo, a decifração obsessiva do investigador criminal ou a meticulosidade do editor que tenta desesperadamente criar uma narrativa que nos toque.

As imagens são injectadas ao segundo e ao megabyte no tik tok, no insta, no face, no yout, no whatsapp e delas esperamos apenas um segundo de fantasia, de comicidade, de excentricidade que amanse a nossa necessidade de conforto.

As imagens deixaram de ter valor narrativo e testemunhal.

O que Capa, Walid Raad e tantos outros tentaram e continuam a tentar com o seu trabalho, cujo valor está agora quase extinto, permite-nos ver que o “One.Six.” não é de modo algum um ponto de um percurso de violência com plano de destruição, é apenas o local e o tempo de uma das chegadas possíveis de uma campanha sórdida de agressividade caótica sem fundamento e principalmente sem meta definida.

As primeiras imagens que devem ser observadas são as nas escadas do Capitólio.

As imagens mostram que cada um dos intrusos prestes a o ser está por si, não há um sinal revelador de organização e premeditação das falanges celulares dos Black Bloc, dos Proud Boys ou de tantas outras micro entidades políticas radicais prontas a executar o Mal.

Os filiados naquelas e em tantas outras micro entidades estão nas escadas, mas com cada um deles não está nem a falange, nem o plano, nem a operação.

Os intrusos que agora já o são avançam pelos corredores sempre a olhar para trás, param nas salas a olhar para todos os lados, nas mãos têm apenas os aparelhos com que se filmam, e não são eles, mas o conforto da multidão que os leva para a frente.

As imagens que mais devemos observar com os métodos do etnógrafo, do investigador criminal e do editor são as da sala democrática.

A linha de continuação da tragédia é construída aqui.

O nosso dever é o de recuperar capacidades perdidas no passado e de fixar os perfis pessoais desenhados pelas imagens porque todos os pormenores daqueles têm as pistas que devemos decifrar.

Os gorros, os capuzes os bonés, os chifres, os capacetes das operações especiais.

Os coletes, os camuflados, as camisolas gráficas, as calças do depósito de réplica militar.

Os intrusos vestiram-se para a frequência do ritual com que periodicamente tentam romper a fatalidade inescapável que faz parte da maioria dos seus dias.

O ritual costuma ser cumprido na maratona da arena de videojogos, na ida ao estádio, no churrasco na floresta depois do treino de fogo, no festival cosplay, na imitação numa manifestação de quarteirão e avenida urbanos do guerreiro radical pelo clima ou pelos direitos humanos em Hong — Kong, ou na ida ao comício político, se for em solo norte-americano.

Os intrusos estão a praticar o ritual no lugar onde nunca esperaram estar, depois de terem partido do seu ritual mais acarinhado nos últimos anos, o do comício Trump.

A execução do ritual na sala democrática suprema do seu país é para eles um choque.

Como partilhou Simon Schama, no Financial Times, acreditando ainda na função das imagens, “there was a moment, amid Wednesday’s mayhem in the US Capitol, of revelatory confusion on the part of the invaders. Once through the smashed windows, it was unclear what was next on their agenda”.

Assim tendo sido, não é estranho que aos intrusos baste como pão para a alma, para a mente e para a existência ocupar, marcar a sua ocupação com imagem e roubar.

Não lhes passa pela cabeça destruir o que é importante, explodir o espaço, magoar quem importa, matar.

Encetar a rotura com as regras do sistema democrático, executar o terror e passar para o outro lado não é o seu plano, e muito menos a sua escolha.

Os intrusos estão ainda muito longe de Timothy James McVeigh em Oklahoma em 1995 e dos Weather Underground, e mais longe ainda daqueles que neste momento juram que no futuro próximo a destruição é o único caminho da vingança.

J.G. Ballard observou e conheceu intrusos semelhantes a estes, escrevendo sobre eles em “Kingdom Come”, que continua a ser um dos grandes manuais de conhecimento da sociedade ocidental contemporânea, que “the suburbs dream of violence. Asleep in their drowsy villas, sheltered by benevolent shopping malls, they wait patiently for the nightmares that will wake them into a more passionate world”.

Os observados por Ballard estão no subúrbio europeu e em alguns dos americanos, mas também no bairro urbano degradado e na pequena cidade empobrecida da topografia americana.

Os que vagueiam e posam na sala democrática são os que Ballard identifica como os que não conseguem evitar o facto de que “parking was well on the way to becoming (…)” o seu “greatest spiritual need”.

Os que se filmam na sala democrática para no momento e para mais tarde imortalizar na rede são os metalúrgicos do Ohio, os fabris da Pensilvânia, os empacotadores de carne de Chicago, os pequenos comerciantes locais do Michigan, os funcionários do retalho de Nova Iorque.

Ao seu lado, é importante não esquecermos, estão o influenciador político que falhou o número mínimo de seguidores nas redes, o programador de apps submerso na ligação infinita desde JFK em Dallas que explica tudo, o jardineiro desempregado, o condutor de camiões de produtos químicos, o gerente da empresa de seguros da cidade média.

Os intrusos são apenas os membros do MAGA (Make America Great Again), um rótulo mediático que tanto implica a filiação a Trump nestes últimos quatro anos como uma marca tribal como um desejo de sobrevivência pessoal, comunitário e étnica de muito complexa definição e quase impossível concretização.

O que os levou à sala, e o pouco que os une na sala, é a esperança de que “uma luz é melhor que nenhuma (…). Qualquer luz é melhor que a noite escura”, como bem descobriu Sam Shepard, nas hoje esquecidas “Crónicas Americanas”.

Cinco pessoas morreram no cerco, invasão e ocupação pela força de um espaço público durante três horas, um crime comum que nunca teve textura para ser uma insurreição ou o primeiro movimento de um golpe de Estado.

Não é uma farsa porque morreram pessoas, mas é um episódio trágico menor.

Não foi a primeira vez que assim aconteceu na história americana.

Don Dellilo, nas suas narrativas, conta-nos frequentemente dos inúmeros conflitos internos localizados americanos que não passam da vontade desencadeada pela variante truncada da mitologia fundadora.

“But the bombs were not released (…). The men came back and the cities were not destroyed”, escreveu ele, em “Underworld”.

O ponto de encerramento da tragédia é aqui, aparentemente.

Na verdade, a tragédia do “One.Six.” tem alguns outros pontos de começo, uma linha de caminho que se consegue visualizar, e uma praça de fim de percurso que nos envolve a todos.

Um dos outros pontos de começo, que guiou e determinou toda a linha de caminho, é a repetição histórica da facilidade com que um líder político, desde que escorado no volume adequado de Poder, legitimidade e visibilidade, consegue conduzir as massas.

Apoiado num conceito simples de enorme e permanente valor comunicacional, porque permite o desdobramento infinito em narrativas cativantes, partilhadas do Twitter ao canal público televisivo, que Arlie Hochschild definiu em “The Guardian”, em Setembro, como “to complex problems, Trump offers simplistic, strongman magic. Like the image on the five-year-old boy’s flag of a Rambo-Trump, muscular arms wrapped around a magical missile gun, the image fits his magical claim that only he can fix everything”, o ex-presidente e candidato derrotado em Novembro desbravou o trilho principal para a tragédia do “One.Six.”.

Até à sua derrota em Novembro foi capaz de sustentar durante quatro anos a narrativa de que o mundo interno e externo o isolava de modo atroz e permanente, apesar de ser um dos principais responsáveis pela calamidade extrema da sua nação ficar para a história como uma das mais incapazes de enfrentar uma pandemia viral, pagando um preço elevado por isso, e de nunca ter tido uma política interna e externa coerente, inteligível e consequente.

Após a sua derrota em Novembro, foi capaz de sustentar a narrativa de que o mundo interno e externo jogava agora na oportunidade única de o isolar de modo ilegal, atroz e permanente, exilando-o, com truques eleitorais sujos, da possibilidade de continuar a ser presidente.

A capacidade assombrosa de cativar milhões de americanos com duas narrativas tão básicas poderá dever-se ao facto de que, como refere Schama, Trump “(…) cast himself as the defender of a “true” America under siege from liberal pluralism and immigrant invasion. “They’re coming for your suburbs” was the core message of his re-election campaign. Pandemic notwithstanding, Mr Trump resorted to mass rallies where he could once more feel the love and weaponise the hate”.

O percurso de Trump encaminhou uma porção das massas MAGA para o “One.Six.”, porque, como bem identifica Susan B. Glasser, na New Yorker, “Trump’s incessant questioning of the basic institutions of our government and electoral system has now produced his desired result, even if he may not be back for another four years: a superpower torn apart from within, no longer trusting of its own democracy”.

O facto de Donald Trump ter conseguido cativar milhões de americanos, e outros milhões pelo mundo, com duas narrativas tão frágeis será objecto para investigadores nas próximas décadas e é tema que deverá estar sempre no centro das nossas preocupações quando pensamos o mundo que temos neste momento.

Um outro também possível ponto de começo da tragédia é a capacidade de o território virtual localizar, converter e alimentar a alma e a mente dos que procuram ou estão prontos para o acolhimento de uma realidade concorrencial à dominante, ou até paralela.

Os MAGA, como em outros quadrantes da rede infinita os antifa e tantos outros, pesquisam freneticamente e consomem com devoção os locais digitais gerados pela natureza essencial e pela que é hoje uma das funções primordiais das redes, que Castells define como “(…) meaningful because they provide the plataform for this continuing, expansive networking practice that evolves with the changing shape of the movement”.

Deste modo, sublinha Castells, a plataforma híbrida garante “an interaction between the space of flows on the internet and wireless communication networks, and the space of places of the occupied sites and of symbolic buildings targeted by protest action”.

Para Castells, “this hybrid of cyberspace and urban space constitutes a third space…”, a que chama “…the space of autonomy”.

Nos fluxos, nós e plataformas do território digital global, o local mais livre e libertário do espaço de autonomia proposto por Castells, aberto e sem controlo estatal e multilateral constroem-se e deixam-se em acessibilidade aberta e criptografada todas as narrativas que simplificam a realidade política, económica e social contemporânea, mais todas as outras alternativas que servem na perfeição a emoção, a interrogação e raiva do excluído, do afastado, do impotente, como também do que se classifica como marginalizado, bloqueado, afastado ou imobilizado.

São narrativas talhadas de um modo encoberto pela trama e metodologia de alguma da literatura fantástica clássica e pelo molde da propaganda histórica, com uma latitude temática extrema, indo da reunião dos suspeitos reconhecíveis unidos numa manobra de tomada ou controlo do poder, até ao subtil levantamento de dados de verificação impossível impostos como factos para suporte de uma hipótese insustentável, passando pela negação do que as instituições, das científicas às políticas, apresentam como investigado, testado e provado.

As narrativas referidas, inexpugnáveis nas plataformas digitais, e disponíveis de modo instantâneo no dispositivo, permitem aos iniciados, de algum modo, afastar “(…) the sadness and clarity of time (…), how the sound, the shaped vibrations made by hammers striking wire strings made them feel an odd sorrow not for particular things but for time itself (…) the texture of unmeasured time that were lost to them now (…), que DeLillo fixou num parágrafo, novamente de “Underworld”.

O uso e frequência, por vezes obsessiva, por vezes por necessidade existencial, das plataformas do território digital que acantonam as narrativas referidas, assegura, prolonga e renova a existência do movimento e da comunidade local, regional, nacional e global que o mantém vivo, por vezes levando movimento e comunidade a encaminhar-se para momentos e locais como o do “One.Six.”.

A mais sólida possibilidade de ponto de começo de tragédias como a do “One.Six.”, que é também a linha de caminho que esta percorre do início ao fim, e ainda a praça de fim do percurso, é simultaneamente de genuína natureza norte-americana e de uma natureza global contemporânea com a extensão necessária para atingir qualquer cidadão de uma democracia ocidental.

O “One.Six.” é geneticamente uma tragédia norte-americana porque na cultura dos seus cidadãos está gravada a convicção profunda que DeLillo, ele novamente, tão bem interpreta, em “Running Dog”, de que se vive “the age of conspiracy […] This is the age of connections, links, secret relationships […] Worldwide conspiracies. Fantastic assassination schemes”.

Na cultura de milhões de seus cidadãos, os pilares da superpotência norte-americana iniciada em 1945, a cultura do sonho e da meritocracia, o equilíbrio e a igualdade garantidos pela democracia, o primado da Lei, a capacidade económica da multinacional, o valor garantido pela investigação científica e aplicada, e a força garantida pelo aparelho militar e policial, são também os agentes e os mecanismos, do complexo militar-industrial ao QAnon, passando pelo Estado Profundo e pelas Grandes Tecnológicas, que subvertem Constituição e Lei para atingirem os seus interesses.

O “One.Six.” é ao mesmo tempo uma tragédia ocidental porque o que a enceta e a concretiza é a perda de confiança de milhões de cidadãos na democracia e nos fundamentais da sua sociedade.

Levitsky and Ziblatt, em “Como Morrem as Democracias”, consideram como principais indicadores de erosão democrática a “rejeição (ou fraco compromisso com) as regras democráticas do jogo”, a “negação da legitimidade dos opositores políticos”, a “tolerância ou incentivo à violência” e a “prontidão para reduzir as liberdades civis dos oponentes, incluindo os meios de comunicação”, ou seja, por outras palavras, estratégias e acções políticas em execução hoje em todo o Ocidente, aplicadas com arte suficiente para cativar os cidadãos.

Ao mesmo tempo, são também milhões os cidadãos ocidentais que não encontrando modos para lidar com o domínio ascendente da China e da Ásia, a desigualdade de rendimentos, a automatização do trabalho e a instabilidade permanente de uma sociedade que não consegue resolver grande parte de mais alguns outros dos seus problemas complexos, da desintegração da família à baixa qualidade do ensino público, anseiam por acreditar que a solução está num novo Trump que chega, numa narrativa colocada na plataforma digital que ilumine a realidade, num sistema credível que substitua o democrático, numa fórmula retórica que resolva a desigualdade e garanta o emprego.

São estes milhões de cidadãos que já acreditam ou que um dia poderão acreditar que um “One.Six.” é um passo necessário para transformar a utopia em mundo real.

É fundamentalmente por isto que a tragédia americana do “One.Six.” é a de ser a nossa.

Confinados nos seus apartamentos, caminhando sozinhos nas ruas, esmagados numa carruagem de um sistema de transporte público falido, fixados de modo doentio nos seus telemóveis, perdidos numa cidade americana ou numa cidade ocidental, há milhões de cidadãos a quem “ainda lhe acontece ficar silenciosa, quieta, a olhar para coisa nenhuma durante muito tempo. Refere-se ao seu passado como o tempo em que não se sentia estilhaçada”, imagina Shepard no livro citado neste texto.

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José Vegar

Fieldwork & Narrative since 1969. Lisbon, Portugal.