Uma Cornucópia para a Desolação

José Vegar
5 min readDec 22, 2021

O problema fundamental é o de que todas as ameaças presentes, com a excepção de uma, ainda não estão integradas no nosso espaço mental prioritário.

Está ainda bem vincada uma fronteira entre o que consideramos um perigo que pode realmente atingir-nos em qualquer momento em qualquer lado, e aquilo a que Toby Ord e outros chamam “riscos existenciais”, isto é, ameaças que podem destruir parte considerável ou a totalidade da humanidade.

A excepção à nossa fronteira mental é obviamente o perigo, cada vez mais presente, de um desastre ecológico global e progressivo.

Todos os outros riscos existenciais, a começar no provocado por uma pandemia viral, continuam afastados da preocupação central de milhões de nós, como se pode observar de há dois anos para cá.

Um outro risco existencial que é quase apenas pensamento de conjurados é o da extinção quase total e da industrialização elevada dos alimentos que formam a dieta habitual dos humanos.

O que é engraçado no risco da extinção ou industrialização total da comida é que ele se manifesta todos os dias perante nós, mas só o pensamos pela superfície.

Simplificando, há dois níveis para pensar um pouco mais este risco.

O primeiro é aquilo a que chamo o “paradigma do pão de quilo alentejano”, ou seja, como a mecanização do plantio, da colheita, da feitura e da distribuição destroem culturas e alimentos, fazendo-os perder tudo o que eram.

O segundo é como o aumento global brutal de consumidores criou uma pressão a que a oferta não consegue resistir, podendo levar ao esgotamento de inúmeras categorias do que consideramos alimentos, dos vegetais ao peixe.

Qualquer cidadão com um mínimo de consciência entende isto quando percorre o interminável corredor de um hipermercado.

O circuito extenso que está por detrás do alimento da origem ao consumidor, o processo técnico para o conservar comestível, a abundância permanente e a diversidade inesgotável da oferta não são sustentáveis.

Claro que há, e sempre houve, um pouco por todo o mundo, circuitos alternativos, do local ao biológico, mas não são convenientes e acessíveis à maioria.

Os sensíveis a este risco existencial, uma extrema minoria global, como escrevi, acantonam-se em dois grupos.

Os que se preocupam, mas realmente entendem pouco do processo, como é o meu caso.

E os que encaram a alimentação como um problema de segurança global e nacional.

Neste segundo grupo está a cientista Molly Jahn, e o que ela investiga e o caminho que propõe são fascinantes.

Jahn lidera actualmente o “Projecto Cornucópia”, financiado e coordenado pela DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency), aquela agência norte-americana onde qualquer projecto louco é considerado digno de investimento, como foi o caso da rede, há umas décadas.

O projecto Cornucópia é tão simplesmente o de “rather broad goal of reinventing the entire process by which food gets made”.

Para tentar concretizar a Cornucópia, Jahn, à semelhança de escassos outros, começou por investigar o sistema alimentar global.

O que encontrou não é bonito.

O que encontrou, novamente como percebemos nos corredores dos hipermercados, é que o sistema está orientado para “empilhar alto e vender barato”.

Jahn descobriu que o sistema alimentar global está concentrado, industrializado e globalizado.

Alguns dos macro indicadores são impressionantes, como 70 por cento dos agroquímicos serem controlados por três empresas, 90 por cento dos cereais serem detidos e comercializados por quatro multinacionais e sessenta por cento de toda a oferta alimentar ser formada por apenas três espécies, milho, trigo e arroz.

Claro que esta industrialização global cobra um preço gigantesco aos trabalhadores, daqueles que cortam carne nos matadouros, aos que colhem nas estufas e campos infinitos, como também aos consumidores, porque é impossível manter a integridade original dos alimentos.

E, obviamente, o processo alimentar corrente agride de modo violento e permanente o ambiente.

Como diz Jahn “as mudanças climáticas são humanos a usar energia fóssil para suportar práticas como a da agricultura convencional que estão a libertar demasiada energia para o sistema”.

“O problema”, acrescenta ela, “é que vimos a abundância alimentar como uma estratégia de gestão de risco. Hoje esta estratégia tem custos altos”.

Ou seja, é um problema de segurança nacional e global.

Como escreve Rana Foroohar, no longo artigo do “Financial Times” dedicado ao trabalho de Jahn que deu origem a este escrito, “food has become central to defence types as part of the changing nature of war, which may be less about missiles and more about the resilience of highly technical, connected systems, like agriculture”.

O projecto Cornucópia visa essencialmente criar um novo sistema alimentar global, que consiga corresponder às necessidades humanas, mas reduza o consumo de energia e os danos para o ambiente e para os humanos.

O caminho para Jahn é o do “relativamente inexplorado universo dos micróbios, bactérias e fungos ser capaz de produzir nutrientes em horas ou dias, muito mais depressa do que plantar num campo”.

Claro que um pouco por todo o mundo este caminho está a ser seguido, por start-ups e laboratórios, mas a via de Jahn é um pouco mais ambiciosa.

A via da cientista, segundo escreve Foroohar, é a de “pegar nesse conceito de fazer alimentos não a partir de animais ou mesmo de plantas, mas sim de micróbios e usá-lo para descentralizar a própria produção alimentar”, fazendo com que “todos pudessem produzir ingredientes básicos para as necessidades domésticas”.

Aponta a cientista: “E se os alimentos fossem mais como o ar, para que ninguém os pudesse controlar facilmente e todos pudessem ser agricultores numa pitada de água? Se quisermos realmente tornar o mundo melhor, então dar aos indivíduos mais agência sobre os seus alimentos é não só mais seguro, mas também fortalecedor. Talvez todos devam ter uma engenhoca que possa transformar o ar e a água numa substância básica, ou, pelo menos, apoiar os sistemas alimentares quando estes falham”.

Assim, revela Jahn, a via principal da Cornucópia é tentar encontrar a tecnologia e a ciência indicadas para descobrir se “carbono, azoto, hidrogénio e oxigénio do ar e da água” podem ser “transmutados em mais micróbios que produzem moléculas alimentares, incluindo proteínas, gorduras, hidratos de carbono e fibra alimentar — sob a forma de alimentos seguros e palatáveis, utilizando fontes de energia móveis”.

O ponto de desenvolvimento actual do Cornucópia é o de que Jahn e a sua equipa, juntamente com outros especialistas, estão “a dividir a água e o ar em elementos e depois a juntá-los em novos tipos de micróbios”.

A ideia, como escrevi, é que estes possam gerar “diferentes tipos de alimentos”.

O caminho da Cornucópia é fascinante, tal como outros que neste momento nos rodeiam, dos da inteligência artificial aos modos de trabalho.

Teremos de nos habituar que vivemos um tempo de revolução.

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José Vegar

Fieldwork & Narrative since 1969. Lisbon, Portugal.